Saneamento urgente – 04/07/2020 – Opinião
Há muito tempo não surge uma grande novidade tecnológica no saneamento básico. Ao longo dos séculos 19 e 20, diversas nações vieram desenvolvendo seus serviços de entrega de água potável e de coleta e tratamento de esgoto mais ou menos da mesma maneira.
A necessidade de investimentos elevados poderia ser empecilho para países pobres, mas não para os que, como o Brasil, há muito superaram os limiares da baixa renda.
A atratividade também salta aos olhos. Um mercado de 212 milhões de pessoas ainda longe da plena capacidade parece pepita de ouro num mundo em que aplicar dinheiro em fontes tradicionais significa ser punido com juros negativos.
Dos ganhos sociais, nem se fale. No mínimo um terço da queda histórica na mortalidade infantil se deve à chegada da água encanada e da coleta do esgoto. Crianças e adultos adoecem menos em razão desses serviços e por isso tornam-se mais assíduos na escola e no trabalho. Aprendem e produzem mais e acumulam mais renda e bem-estar no curso da vida.
Por que mistério, então, quase metade dos lares brasileiros, finda a segunda década do século 21, ainda não se conecta à rede de esgoto? Que sortilégios transformam cada 100 litros de esgoto produzido em apenas 46 tratados? A resposta genérica passa pelo que alguns estudiosos têm chamado de apropriação extrativista do Estado.
Mas a mais específica diz respeito ao mecanismo constitucional de 1988 que atribuiu ao município a responsabilidade pelo saneamento, ademais numa quadratura que confundia serviço público com empresa estatal. Combater a ineficiência dessa fórmula já custou 32 anos de reformas, processo que deságua agora na aprovação de um novo marco pelo Congresso.
O diploma, que aguarda sanção presidencial, carreia uma série de ferramentas e incentivos para superar o atraso na universalização.
Estimula a criação de consórcios de municípios para a exploração dos serviços, obriga à pactuação de metas físicas de expansão entre o poder público e os concessionários, favorece a competição adotando licitações, cria selos de governança para agências reguladoras locais e acaba com privilégios para a atuação de empresas estatais nesse ramo da infraestrutura.
O projeto estipula que, em 2033, coleta e tratamento de esgoto cubram 90% da população e que o percentual com acesso a água potável, hoje em 84%, chegue a 99%. O prazo poderá ser estendido até 2040 desde que se apresentem justificativas para o não atingimento, cláusula importante num país com muitas peculiaridades regionais.
Concessionárias agora terão autorização provisória para drenar o esgoto em direção a estações de tratamento por meio dos escoadouros de águas pluviais, muitas vezes já implantados em regiões desassistidas, o que deve acelerar a cobertura. A ligação à rede coletora será obrigatória, e subsídios poderão ser incorporados à tarifa geral para financiar as obras de conexão nas residências dos mais pobres.
A modernização, embora tardia, deve ser elogiada com um grau de ceticismo. A aprovação do marco do saneamento não garante, por si só, a atração de investimentos, estimados em até R$ 700 bilhões, para a universalização do acesso à água e ao esgoto no Brasil.
Dado o estado falimentar dos tesouros públicos, esse capital terá de vir sobretudo de investidores privados os quais, por seu turno, precisam ter garantias de que não estarão expostos, durante as décadas de vigência do contrato, a reviravoltas nas regras do jogo.
Para tanto, é crucial que o novo edifício regulatório seja erguido em bases sólidas de suas fundações federais até os patamares subnacionais. A Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) talvez seja a peça basal mais importante.
Ela passa a acumular funções de supervisionar e credenciar reguladores locais e para tanto deve pautar-se numa agenda técnica. Se o Senado aceitar as barganhas politiqueiras tradicionais para o preenchimento das diretorias da agência, o espírito do novo marco começará a ser distorcido já na largada.
Outros aspectos importantes do processo de instalação do ambiente regulatório serão a calibragem das tarifas, a ponderação de seu impacto na população, sobretudo na mais carente, e a distribuição dos ganhos de produtividade das empresas ao longo do contrato.
O vergonhoso estágio do saneamento no Brasil decorre de várias décadas de desprezo pela boa governança, em nome do atendimento a apetites imediatos do patrimonialismo. Será preciso muito esforço para romper com esse legado.
Fonte: Post Completo