Prefeito de Curitiba torra R$ 6 milhões em esculturas que poderiam custar dez vezes menos

Prefeito de Curitiba torra R$ 6 milhões em esculturas que poderiam custar dez vezes menos

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Em meio a discursos em que pede “responsabilidade e parcimônia” nos gastos públicos, o prefeito de Curitiba, Rafael Greca, do DEM, mandou comprar por quase R$ 6 milhões e sem licitação 12 reproduções de esculturas de bronze do artista paranaense João Turin, morto em 1949. Elas vão compor o que o prefeito quer que seja o maior jardim de esculturas do Brasil.

A aquisição foi feita em junho passado, meses antes da obra de Turin entrar em domínio público, o que aconteceu agora em janeiro. Hoje, a reprodução das esculturas é livre. Ou seja, se tivesse esperado menos de seis meses para fazer o negócio, a prefeitura não precisaria pagar pelos direitos de reprodução das esculturas e poderia abrir uma licitação para escolher o mais barato entre os vários fornecedores disponíveis no mercado.

Iria custar, como nós apuramos, até dez vezes menos.

Mas o político preferiu não esperar, o que obrigou o município a fazer o negócio com Samuel Ferrari Lago, dono dos direitos sobre a obra de Turin desde 2011 e conhecido na cidade como produtor cultural. Como ele tinha à época os direitos sobre a obra de Turin, a prefeitura pode fazer a compra sem licitação – por R$ 5,85 milhões. Assim, Greca não apenas fez com que o município gastasse mais dinheiro como também o entregou a um fornecedor ligado a um doador de sua campanha eleitoral.

O contrato para a compra com inexigibilidade de licitação foi publicado no Diário Oficial em 25 de junho passado. O acordo estipula até 13 meses para a entrega total das peças.

A fornecedora é a SSTP Investimentos Ltda, empresa que pertence a Lago. O empresário disse que as réplicas estão sendo produzidas em Curitiba e nos Estados Unidos. Segundo ele, isso se deve à complexidade de produzir “obras em escala monumental”. As maiores terão três metros de altura.

“A partir de 2020, sob a perspectiva do direito autoral, o processo de inexigibilidade não se aplicaria, porque qualquer artista poderia fazer as reproduções, e a prefeitura precisaria abrir licitação”, explicou Pedro Lana, jurista e integrante do grupo de estudos de direito autoral e industrial da Universidade Federal do Paraná.

“A administração pública deve seguir princípios de razoabilidade, proporcionalidade e moralidade. Pelos valores altos e pela data em que o contrato foi feito, me parece um caso de mau uso dos recursos públicos e, eventualmente, até de improbidade administrativa”, avaliou o jurista. Caso comprovada alguma relação – mesmo que pessoal ou em negócios particulares – entre ocupantes da prefeitura e o fornecedor, a situação se agrava, frisou Lana.

 

No mercado, a fundição em bronze custa a partir de R$ 80 o quilo. A prefeitura de Curitiba está pagando R$ 1.842 o quilo.

Questionamos Lago sobre os valores do negócio com a prefeitura. Ele defendeu-se dizendo que o custo foi estabelecido após três perícias. Mas, nos documentos, três peritas contratadas pelo empresário – e não pela prefeitura, como seria de se supor – simplesmente atestam a qualidade estética das obras, sua importância histórica e os valores praticados no mercado de arte. Não há qualquer cotação de preço do material a ser utilizado ou da mão de obra que justifique o tamanho da despesa que a prefeitura escolheu pagar.

Nós fomos ao mercado e encontramos preços muito menores. A fundição de peças em bronze custa a partir de R$ 80 o quilo, aí incluídos material e mão de obra. Para efeitos de comparação, a da SSTP irá sair a R$ 1.842 o quilo.

Para reproduzir Índio Guairacá I, Lago irá embolsar R$ 540 mil. Mas uma empresa de Minas Gerais com tradição na área disse ser capaz de fazer o mesmo trabalho por R$ 40 mil. Pela produção da escultura Índio Guairacá II,  Lago cobrou R$ 750 mil da prefeitura. Nós conseguimos um orçamento para a produção dela por R$ 73 mil, nas mesmas especificações, dimensões e material das encomendadas à SSTP.

Outra empresa, a Fundiart, de Piracicaba, São Paulo, uma das mais respeitadas do país no ramo, também nos fez um orçamento com valores muito menores que os pagos pela prefeitura: R$ 97 mil para reproduzir Índio Guairacá I e R$ 127 mil por Índio Guairacá II.

A Fundiart já produziu esculturas notórias: saiu das oficinas dela o monumento a Carlos Drummond de Andrade e Mário Quintana, obra de Francisco Stockinger instalada no centro histórico de Porto Alegre. A empresa também fundiu Namoro, da premiada escultora catalã Margarita Farré, radicada em São Paulo desde 1957.

Ainda que a prefeitura incluísse na licitação parâmetros técnicos que eliminassem os fornecedores que elaboraram os orçamentos que obtivemos, é improvável que os preços chegassem a custar dez vezes mais.

O Intercept perguntou a Samuel Lago qual fatia do preço cobrado se refere ao custo de propriedade da obra. Ele tentou sair pela tangente: “Não negociamos os direitos pela reprodução das obras, só, como detentores dos direitos, as obras originais, prontas e certificadas”, disse.

É um argumento que não se sustenta, segundo Lana. “[Prefeitura e o detentor dos direitos] Não estão negociando as obras originais, e sim cópias delas, o que necessariamente envolve direitos autorais, como inclusive está expressamente previsto no contrato”.

Procurada, a prefeitura de Curitiba justificou a pressa e a mão aberta dizendo que as esculturas fazem parte de um “projeto já em curso nesta gestão”, e que “o município precisa trabalhar com reprodução devidamente certificada, dentro de condições técnicas adequadas, credenciais de originalidade, moldes fidedignos, modelos originais”.

Afirma, ainda, que “o que está sendo adquirido são obras, não direitos de uso público”. Algo que o próprio contrato refuta, ao determinar que Lago “transfere o domínio e a posse” das esculturas ao município, mencionando expressamente a lei de direitos autorais.

Contrato entre prefeitura e empresa de Samuel Lago deixa claro que negócio envolveu cessão dos direitos autorais das obras de João Turin.

Suspeitas no passado

O caso das esculturas de João Turin não é o primeiro que associa Greca à suspeita de irregularidades com obras de arte, algo que lhe é caro. No apartamento em que vive no Batel, bairro nobre de Curitiba, as paredes são cobertas por quadros e objetos de arte.

À Receita Federal – e à Justiça Eleitoral – o político estimou que sua coleção de 33 itens vale R$ 63,15 mil. É um valor provavelmente subestimado. Nada menos que 11 das peças foram declaradas pelo valor de R$ 693,98. Entre elas, um desenho de Poty Lazarotto, gravurista e ilustrador das primeiras edições dos livros de Guimarães Rosa. Poty, morto em 1998, é um dos artistas mais reverenciados do Paraná.

Na campanha eleitoral de 2016, Greca foi acusado pelo então prefeito Gustavo Fruet, do PDT, de roubar peças que pertenciam ao município quando o comandou pela primeira vez, nos anos 1990. Peças muito parecidas apareciam num vídeo que Greca gravou em sua chácara. Ele negou.

Fruet criou uma investigação interna da prefeitura para analisar o caso, que foi suspensa ainda durante as eleições a pedido dos advogados da coligação partidária de Greca. Com o político já empossado prefeito, a apuração acabou arquivada por unanimidade após um laudo técnico da própria prefeitura apontar não se tratar das mesmas peças.

 

Rafael Greca tem convicções frágeis. Foi do partido da ditadura militar ao PDT de Brizola, apoiou o PT e hoje acena à extrema direita.

Em 2000, ministro do Turismo do governo do tucano Fernando Henrique Cardoso, Greca comandou os festejos dos 500 anos da chegada dos portugueses ao Brasil. A estrela da festa, porém – uma réplica de uma das naus que trouxe os navegantes, que havia custado o equivalente a mais de R$ 10 milhões, em valores atualizados –, teve problemas e precisou ser retirada da cerimônia para não afundar. O que acabou indo a pique, dias depois, foi a carreira ministerial de Greca.

Dono de um estilo histriônico – costuma cantar sozinho o hino de Curitiba em solenidades e gosta de usar um linguajar rebuscado –, Greca, de 63 anos, é um político de convicções pouco sólidas. Começou a carreira no PDS, partido que sucedeu a Arena, dos ditadores militares. Dali, foi para o PDT, de Leonel Brizola, e em seguida para o PFL de Antônio Carlos Magalhães – pelo qual chegou ao ministério de FHC.

Magoado com a demissão e preterido como candidato ao governo do Paraná em 2002, Greca mudou de lado: filiou-se ao PMDB e de imediato tornou-se entusiasta dos governos federais do PT. Mas voltaria a mudar conforme os humores da opinião pública: em 2016, elegeu-se com discurso conservador pelo nanico PMN, e finalmente voltou ao DEM – a versão com botox do PFL. Prefeito, estendeu o tapete vermelho ao bolsonarismo.

Greca não esconde que é candidato à reeleição em 2020: se vencer, terá seu terceiro mandato como prefeito da cidade, algo só alcançado por seu criador político – e hoje desafeto – Jaime Lerner. Urbanista, Lerner comandou Curitiba nos anos 1970 e 80, nomeado pela ditadura militar, e usou a oportunidade para impor uma gestão tecnocrata que legou à cidade um modelo urbanístico que se tornou sua marca registrada e vitrine da ditadura.

Bem sucedido, voltou a ser prefeito – desta vez, finalmente, eleito – em 1989, e dali pavimentou seu caminho para duas gestões como governador marcadas por benesses fiscais à indústria automobilística e denúncias de corrupção, entre elas o notório caso Banestado, que apresentou ao país figuras como Alberto Youssef e Sergio Moro.

Paparicos rumo à reeleição

Nascido em 1880 no litoral do Paraná, João Turin é considerado o precursor da escultura no estado. Alinhou-se ao movimento modernista e participou do Salão Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, em 1922. Reverenciado localmente, tem obras espalhadas por locais públicos de Curitiba. Fora do Paraná, entretanto, é pouco conhecido – seu verbete numa importante enciclopédia de arte traz apenas as datas de nascimento e de morte e uma lista de exposições de que participou, sem dados biográficos ou imagens de seus trabalhos.

As 12 reproduções de esculturas de João Turin irão compor o acervo do Memorial Paranista, um jardim de esculturas que irá ocupar parte de um dos parques mais antigos da cidade, o São Lourenço. Incrustado no bairro de classe média alta de mesmo nome, o memorial tem inauguração prevista para meses antes da eleição municipal.

“As peças farão parte de um espaço de visitação pública, contíguo ao futuro Memorial Paranista, devendo tornar-se mais um importante ponto cultural da cidade, de convívio para quem mora em Curitiba e de atração para os turistas que visitam a capital”, disse a prefeitura, na resposta a nossas perguntas.

Rafael Greca também inspirou-se no trabalho de João Turin para criar, em setembro de 2018, uma comenda que reconhece personalidades que “contribuíram ao engrandecimento da cidade e do bem-estar de seus habitantes”.

Criada por decreto, a Ordem da Luz dos Pinhais inclui a entrega de medalhas banhadas a ouro e uma imagem similar à da obra “Homem à Altura dos Pinheiros”, de Turin. Cada uma custou R$ 100 aos cofres públicos. Em 2018, elas foram entregues a 28 pessoas. Entre os primeiros agraciados estava Samuel Lago.

Este ano, o prefeito usou a comenda para paparicar políticos: entre os 33 homenageados, estavam o vice-governador do Paraná, Darci Piana, o pai do governador, o apresentador de televisão Ratinho, o ex-juiz tornado ministro Sergio Moro e o senador Oriovisto Guimarães, um dos fundadores do grupo Positivo e eleito senador pelo Podemos em 2018 na onda conservadora e antipolítica que varreu o país.

Os afagos em Piana e no pai do governador Ratinho Júnior, do PSD, são estratégicos. Em 2016, o atual prefeito bateu um pupilo do atual governador nas urnas. Agora, Greca busca costurar alianças para facilitar o caminho até a reeleição.

 

Fornecedor de esculturas é acionista do grupo Positivo. O maior doador individual à campanha de Greca também.

Embora conhecido em Curitiba como produtor cultural, Samuel Lago também é dos principais acionistas e integrante dos conselhos de administração do Grupo Positivo e da Positivo Tecnologia. O pai dele é um dos fundadores do curso pré-vestibular que se multiplicou e deu origem a um dos grandes conglomerados da educação privada no Brasil.

Outro fundador do Positivo, Ruben Formighieri, entregou R$ 50 mil à campanha eleitoral de Greca em 2016. Pode parecer pouco, à primeira vista, mas trata-se da segunda doação mais polpuda que o político recebeu naquele ano, se desconsiderarmos o dinheiro que veio do próprio bolso, da mulher e dos partidos de sua coligação.

Antigo detentor de 14,14% do capital da Positivo Tecnologia, fabricante de computadores, tablets e celulares que pertenceu ao Grupo Positivo, Formighieri distribuiu suas ações entre os três filhos. Eles continuam entre os maiores acionistas do conglomerado.

Já Oriovisto Guimarães, nome mais conhecido dentre os fundadores do Positivo, é o senador mais rico do país, com patrimônio declarado de quase R$ 240 milhões. E, assim como seus ex-sócios, um potencial doador para a campanha eleitoral de 2020.

O gabinete de Guimarães foi procurado pelo Intercept, mas não respondeu à entrevista. Também não conseguimos localizar Ruben Formighieri, a quem procuramos inclusive por meio do atual senador. O espaço está aberto para comentários.

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