Candidata trans à prefeitura de Curitiba: “Mulheres são mais competentes” – 24/09/2020
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Foi um infarto em 2008 que levou a psicanalista, socióloga e economista Leticia Lanz, 69, a assumir a identidade com a qual se identifica desde os quatro anos, quando era tratada pelo pronome masculino. Após sete dias na UTI e a certeza da morte, ela, que é casada com a mãe de seus três filhos há 43 anos, e tem cinco netos, entendeu que o coração só voltaria ao normal se bombeasse no corpo da mulher que sempre soube estar ali.
Especialista em gênero e sexualidade pela UERJ e mestre em sociologia pela UFPR, ela aceitou o convite do PSOL para se candidatar à prefeitura de Curitiba e será a primeira mulher trans a concorrer ao cargo na história da capital paranaense. Mas enfatiza que o ineditismo, para ela, não é tão importante.
“É um aspecto da minha vida que não é o único e muito menos o principal. Ele se torna, muitas vezes, o principal porque as pessoas estão muito organizadas em cima do discurso de gênero e da orientação sexual que, especialmente hoje no Brasil, serve de cortina de fumaça para um monte de outras besteiras que estão sendo feitas.”
A mineira que escolheu viver na capital do Paraná para cuidar melhor da família e foi candidata a deputada federal em 2014 diz que, apesar de viver em uma cidade que, nas palavras dela, é ao mesmo tempo moderna e muito reacionária, não teme por sua vida. Ao contrário, quer viver para ver os índices de feminicídio e assassinatos da população LGBTQI+ reduzirem:
“Se nós não firmarmos as conquistas das mulheres, os homens vão continuar praticando crimes, estimulados pelas lideranças que estão lá em cima, com um discurso misógino, racista, lgbtfóbico, que exclui pobre e idoso”.
E levanta ainda uma reflexão sobre o movimento LGBTQI+: “Nego representatividade (não me representam), porque para eles eu era uma pessoa transgênera, lésbica e velha, e (para se enquadrar), você tem que ser jovem, heterossexual, ser passável e outras coisas”.
O que significa para o eleitor ter uma mulher trans concorrendo à prefeitura de Curitiba?
Para mim, pessoalmente, não significa nada. Eu sou uma cidadã. Embora seja uma pessoa transgênera, esse é um aspecto da minha vida que não é o único e muito menos o principal. Ele se torna, muitas vezes, o principal porque as pessoas estão muito organizadas em cima do discurso de gênero e da orientação sexual que, especialmente hoje, no Brasil, serve de cortina de fumaça para um monte de outras besteiras que estão sendo feitas. Curitiba é uma cidade que, ao mesmo tempo em que apresenta uma capacidade muito grande de ser proativa e moderna nas concepções urbanas, é muito reacionária. E eu não quero aqui dizer conservadora.
Conservador sou eu que sou casado há 43 anos, com uma transição de gênero, e acredito em família.
O cara já teve quatro (casamentos) e disse que defende a família (Leticia se refere ao presidente Jair Bolsonaro, que se casou, na verdade, três vezes). Vou apostar muito nessa capacidade inovadora de Curitiba, que é certamente uma referência mundial de cidade planejada, mas vou enfrentar um outro polo também, que tem um público muito reacionário, capaz de eleger o presidente que nós temos.
Por que aceitou se candidatar?
Por ser uma pessoa trans e pelo partido estar interessado em trazer um bafo de esperança para esse povo desamparado e desacolhido. Foi complicado para mim, porque eu sou uma militante independente, sem vínculo com nenhuma corrente do partido. Tenho muito respeito pelo PSOL por ser a legenda que hoje mais representa o brasileiro, embora a população esteja vacinada contra a ideia de um partido de esquerda. Em geral, costumam nos ver como puxadinho do PT, mas temos nossa própria ideologia. Nós somos a única bancada que nunca teve nenhum caso na Lava-Jato. Então o convite me honrou.
Mas quais são as diferenças entre PSOL e PT?
Primeira coisa: o partido não é personalista. Ele não está vinculado a uma pessoa, que é hoje um grande problema no PT. Apesar de ser um partido grande, ele está exclusivamente atrelado ao Lula, que é um homem que tem méritos, mas, se ele sair de cena, não sobra ninguém. A segunda diferença é que nós somos um partido que está unido em torno de candidaturas. Eu, por exemplo, digo que a minha não pertence a mim, mas ao partido. E a terceira característica é que nós estamos intransigentemente o tempo todo defendendo os interesses do povo brasileiro, e não das situações. Recentemente vimos partidos de esquerda em aliança com partidos nitidamente de direita ou participando de votações que são contra os interesses dos brasileiros.
Quais as suas propostas para Curitiba?
Resgatar a economia do cuidado, voltada para a coletividade, em que se entende as necessidades das pessoas e não das corporações. Ela é baseada em solidariedade, sustentabilidade e justiça social. Temos hoje, de um lado, uma população saudável economicamente, mas que é cuidada pela periferia, que se desloca diariamente por distâncias muito grandes para servi-la como domésticas, por exemplo. E ela não é incluída na vida da cidade. Nas periferias, pequenos negócios estão desaparecendo por falta de recursos, e a prefeitura decide injetar quase R$ 200 milhões nas empresas de transporte urbano, que são riquíssimas (em abril, o prefeito de Curitiba, Rafael Greca, do DEM, enviou à Câmara Municipal projeto de lei que destina R$ 200 milhões para socorrer empresas de transporte coletivo em meio à crise provocada pelo coronavírus). Então, nos primeiros meses, vamos formar uma comissão de especialistas que possam ser ouvidos e, paralelamente, institucionalizar conselhos para que as pessoas possam se manifestar. Se nós temos um problema de água, por exemplo, vamos convocar todos os prédios da cidade para decidir o que fazer.
Você não teme por sua vida e de acabar, por exemplo, como a vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), assassinada em 2018 junto ao seu motorista, Anderson Gomes?
Quem está vivo, de alguma forma, teme a morte. O medo, do ponto de vista psicanalítico, é um bloqueio ao amor. Então, o que eu tento fazer, quando pinta esse medo, é o amor maior. Se optei por estar nessa candidatura é por poder falar, por poder me colocar e utilizar uma coisa que eu acho que eu tenho e é muito boa, que é a capacidade de resumir as coisas. É isso que eu fiz durante 30 anos, atuando como consultor (na área de Recursos Humanos) até o momento em que transicionei e perdi todos os clientes. E fui para a área clínica, onde vou conversando com as pessoas o tempo inteiro. Não posso deixar que o medo impeça que o meu amor se manifeste.
A minha companheira tem mais medo que eu. Mas o que é que eu posso fazer?
Sua candidata a vice é a advogada Giana de Marco. Ou seja, é uma chapa só de mulheres. Mas ainda há poucas na política. O que podemos fazer para que elas participem mais?
Digo que eu sou privilegiada porque eu conheço os dois mundos. Como não transicionei cedo, fui treinada para ser homem e aprendi a ser mulher com mulheres. Não sou apenas uma pessoa transgênera, mas uma trans lésbica. A mulher ocupa todo meu imaginário. Então, o aprendizado que eu tive com as mulheres até hoje é o de que elas são muito mais competentes, capazes e dedicadas, talvez pela própria cultura do cuidado que desde cedo é imposta a elas. Mas elas se acostumaram com milênios de subalternidade.
Acho que as mulheres não participam mais porque elas não acreditam que são capazes, nem têm como exemplo pessoas vitoriosas.
O feminismo foi a luta mais bem sucedida do século 20 porque tirou elas de dentro da senzala, da cozinha, da perspectiva de limpar bunda de menino e colocou-as na chefia de Estado. Os chefes de Estado mais importantes do planeta são mulheres, começando pela Angela Merkel (chanceler alemã), por aquela maravilhosa líder da Nova Zelândia (a primeira-ministra Jacinda Ardern), Dinamarca (Mette Frederiksen), Noruega (Erna Solberg), Islândia (Katrín Jakobsdóttir), Finlândia (Sanna Marin) e até Taiwan (Tsai Ing-wen). Foi o movimento feminista que me libertou e me ensinou as possibilidades que eu tinha como mulher.
Pesquisas estão apontando aumento de casos de violência contra a mulher durante a pandemia pelo mundo. Somente no Paraná, o Ministério Público Estadual levantou que houve crescimento de 17% no número de feminicídios entre março e abril deste ano, comparando com o mesmo período de 2019. Como uma prefeita mulher pode contribuir para que esse número diminua?
Fazendo com que a mulher se conscientize de que ela é dona de si. Muitas amigas advogadas me dizem que a grande dificuldade em combater a violência doméstica é a mulher se convencer de que está sendo violentada. Para ela, o homem tem direito de bater. Isso é corroborado por essas religiões fundamentalistas que a direita americana exportou para todo o Brasil, que diz que a mulher tem que ser submissa ao homem. Outra coisa é pegar todo o serviço de atendimento, como médicos, assistentes sociais e advogados, e treinar essas pessoas para conversarem mais com essas mulheres, e estreitar relações com associações de bairro, para ficarem atentas a esse problema e intensificar a campanha em que a pessoa possa denunciar.
Recentemente, um estudo conduzido por pesquisadores da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) mostrou que, entre 2015 e 2017, mais de 24 mil notificações de violência contra a população LGBTQI+ foram registradas, quase um caso por hora. Desse total, 46,6% eram transexuais e travestis. Como se combate a violência contra essa população?
É extremamente complexo, porque os movimentos que existem hoje no Brasil de defesa de transexuais são binaristas, reacionários e não inclusivos. Eu sofri na mão desses movimentos, aos quais eu nego representatividade, porque para eles eu era uma pessoa transgênera, lésbica e velha, e (para se enquadrar), você tem que ser jovem, heterossexual, ser passável e outras coisas. Ou seja, eles não estão propondo apoiar pessoas que transgridem as normas de gênero, estão propondo ser uma ponte para que você migre de uma extremidade de gênero para outra. Então começa aí o problema, porque não há nenhum tipo de apoio nem às mulheres que estão nas ruas, nem às mulheres que ainda não saíram do armário. Se nós não firmarmos as conquistas das mulheres, os homens vão continuar praticando crimes, estimulados pelas lideranças que estão lá em cima, com um discurso misógino, racista, lgbtfóbico, que exclui pobre e idoso.
O que me levou para a luta foi eu não ficar em casa. Tenho cinco netos e três filhos e quero olhar para eles com a mesma cara que sempre olhei, de pai, de avô e de marido.
Faz diferença se seus netos ou filhos te chamarem de pai ou mãe, avô ou avó, ou para sua mulher te chamar de meu marido ou minha mulher?
Os papéis não estão vinculados ao gênero. A pessoa pode ser chefe e mulher. Na estrutura familiar, a mãe deles sempre exerceu esse papel de forma brilhante. Eu vou competir com ela? Eu sempre exerci de maneira brilhante o papel de pai. Vou abrir mão disso? É disso que estou falando. Aquela desconfiança da mulher em relação ao que ela pode. Eu posso ser chefe. Eu posso ser mulher e posso ser pai. Em quase a metade dos lares brasileiros, a mulher é pai e mãe. Eu vou transicionar e querem exigir que eu seja a mãe?
Muitas pessoas escondem a identidade de gênero para não perder família, não enfrentar preconceitos nem perder o emprego, como aconteceu com você. O que falar para encorajar essas pessoas a ser quem são?
Eu perdi tudo e sabia que ia perder. O medo de perder paralisa. A gente tem que ter vontade de ganhar. Porque se eu ficasse na base do medo de perder, não entrava nessa campanha para me expor mais ainda. Agora, sou uma pessoa preparada. Sou uma mulher com uma experiência em todas as frentes que você possa imaginar. Eu posso contribuir com a minha coletividade nesse momento. Vou me furtar disso porque estou com medo? Paciência. Acho que o preconceito que a gente vê espelhado no olho do outro é o preconceito que a gente ainda não trabalhou na gente mesmo. Me acho uma mulher bonita, inteligente, competente, trabalhadora, dedicada, que cuida, pensa e sente. Então, não tenho motivo nenhum para ter preconceito. Se os outros têm, é uma questão deles eu vou ter que deixar que a coisa ande. Não posso fazer nada a respeito.
Fonte: Post Completo