A lenha ou a fome
Na casa do pedreiro Orlandir Ribeiro, um choça de madeira na periferia de Curitiba, todos os sete moradores estão avisados: quem vir qualquer pedaço de madeira na rua tem que recolher e levar para casa, para transformar em lenha. Nas andanças pelo bairro, o fruto mais velho, de 13 anos, é quem mais tem contribuído com a tarefa. Os pedaços de madeira são cortados, estocados e usados para cevar o fogão a lenha instalado à esquerda da porta de ingresso do estância. Ribeiro levou o utensílio para casa há três meses, recebido uma vez que pagamento por um serviço. Quando, na semana retrasada, o barraco onde a mana dele vivia foi desmontado, a família se apressou para recolher as ripas e tábuas. E são elas que, desde à vista disso, mantêm em funcionamento o fogãozinho branco de duas bocas, solução encontrada pela família para fugir do peso do gás de cozinha no orçamento doméstico. Antes da lenha, a família dormiu algumas noites sem jantar, não por faltar comida, mas por não ter uma vez que cozinhar. Em outras ocasiões, recorreu ao fogão do vizinho para, em uma espécie de mutirão, preparar o arroz e feijoeiro que tinha no armário.
Desde janeiro do ano último, a família de Ribeiro mora no Multíplice 29 de Outubro, uma dimensão de ocupação irregular no bairro Caximba. A mulher dele, Marili Fátima dos Santos, aprendeu com a mãe a controlar o queima de lenha. Adulta, precisou relembrar uma vez que reger o tempo e a quantidade de madeira necessários para manter o calor da labareda. A despeito de qualquer teoria romântica ou bucólica, cozinhar à lenha é tarefa exaustiva, que exige tempo e paciência. Sentada em uma cadeira, alimenta o queima aos poucos, tentando controlar a temperatura. O feijoeiro fica mais de duas horas no fogão, mas sem espessar muito. Sem trabalho nem perspectiva, a dona de casa sabe que está distante o dia em que voltará a usar o gás liquefeito de petróleo (GLP). E já vai ensinando o fruto mais velho, de 13 anos, a lutar com a lenha.
Na casa de madeira de cinco cômodos, além do par, moram seus três filhos, uma mana e uma sobrinha de Marili. O imóvel, vestido com telhas de cimento-amianto, foi comprado a prestação – sem documentos de escritura. Visto que eles têm que estar gastando as parcelas mensais de 500 reais da casa, pouco sobra para todo o resto. Nenhum dos adultos tem serviço fixo. Todos vivem dos “bicos” que Ribeiro faz uma vez que pedreiro e da assistência da sociedade social ou do município. Mas com o dinheiro cada vez mais pequeno na pandemia, não havia uma vez que comprar gás para cozinhar o manjar recebido em doações. “Muito ou mal, comida sempre teve. A gente recebe bastante ajuda. Almoço, a gente pega na associação [de moradores]. Para a janta, tem a cesta [básica] que a gente sempre ganha e uma ou outra coisa que a gente compra. Mas, para o gás, não estava dando. Quase 100 reais um botijão… Comprar de que jeito?”, disse Marili. “Não dá pra deglutir arroz e feijoeiro cru. É duro você ver a comida ali e não ter uma vez que cozinhar para os filhos, ter que ir dormir sem a janta… A lenha tem salvado a gente.”
No Caximba, cozinhar a lenha é a forma que muitos moradores encontraram para não passar inópia depois que o preço do gás de cozinha chegou às alturas. O bairro fica a 11 km da Refinaria Getúlio Vargas (Repar), da Petrobras, no município vizinho de Araucária, responsável por 12% da produção pátrio de derivados de petróleo e de onde sai todo dia GLP para os mercados do Sul e de Mato Grosso do Sul.

Marili Santos não sabe quando voltará a usar gás: “É duro você ver a comida ali e não ter uma vez que cozinhar para os filhos”
A vida real passa longe das promessas consecutivas do ministro da Economia, Paulo Guedes, de que no primeiro ano da Presidência de Jair Bolsonaro o preço do botijão cairia pela metade. O botijão de 13 kg, que custava 69 reais, subiu para 85 reais. Só em 2021, a suprema foi de 20,34%, segundo a Instauração Getulio Vargas (FGV). Na segunda semana de junho, a Petrobras fez o 15º reajuste ininterrupto no preço do GLP vendido às refinarias. No Paraná, o preço do botijão disparou de 71,57 reais, em agosto do ano último, para 88,17 reais, agora, segundo a Escritório Pátrio de Petróleo (ANP). Em Curitiba, o resultado chega a ser vendido a 92 reais. A capital que tem o preço médio mais ressaltado é Macapá, no Amapá: 103,78 reais.
A porção mais pobre do Caximba é a ocupação irregular do Multíplice 29 de Outubro, uma dimensão que começou a ser habitada desordenadamente em 2009, depois da desativação de um aterro sanitário que funcionou nos periferia por 21 anos. São sete vilas, todas num fundo de vale em que deságuam os rios Iguaçu e Barigui, ao longo do qual se estendem mais de 2 milénio barracos de madeira ou residências de alvenaria. A maioria das ruas e vielas é de terreno. Segundo um cadastramento da Companhia de Habitação Popular de Curitiba (Cohab), a renda familiar média é de 1,8 milénio reais mensais. Ao longo do multíplice, veem-se pontos com esgoto a firmamento acessível, valetas com detrito de Esgoto e muitas casas de palafita, o que fez com que, em 2018, em visitante à comunidade, o apresentador Luciano Huck comparasse a ocupação à favela de Cité Soleil, em Porto Príncipe, no Haiti. A comunidade vive certa tensão desde o último abril, quando uma líder comunitária foi assassinada.
Durante a pandemia, o Meio de Referência de Assistência Social (Cras) do Caximba ampliou os atendimentos. Em maio, foram concedidos 893 auxílios de 70 reais em créditos para compras em armazéns mantidos pela prefeitura, com preços subsidiados. Antes da Covid-19, a média de concessões ficava entre 30 e 50 benefícios por mês. Até pelo Disk Solidariedade – um meio para efetivar e solicitar doações de roupas e móveis –, o Cras do Caximba já recebeu pedidos de moradores por fogões à lenha. Segundo a Cohab, de 1.178 famílias cadastradas na Vila 29 de Outubro – uma das comunidades do multíplice –, 656 são consideradas de “suprema vulnerabilidade social” e recebem o Bolsa Família. A prefeitura tem em realização um projeto-modelo para realocar 1,7 milénio famílias do multíplice no chamado Bairro Novo do Caximba. “São famílias em extrema vulnerabilidade social. O aumento do gás atinge essas pessoas de forma muito considerável, porque são famílias inteiras que vivem com pouquíssima renda”, observou a pedagoga e coordenadora do Cras do Caximba, Rosilda Aparecida Fernandes de Araújo. “Alguns nem têm o fogão a lenha, mas quando falta gás, improvisam um fogãozinho com tijolo”, acrescentou.
As pequenas chaminés dos fogões a lenha se multiplicam em todo o Caximba. Funcionário de uma loja de material de construção, José Graci dos Santos recolhe toda a madeira que encontra em canteiros de obras que visitante a trabalho. Quando sobra tempo, aproveita o caminhão da empresa e leva o carregamento ao pai, o oleiro reformado Pedro Francisco dos Santos, que mora a 11 km da loja, em um choça de madeira. Com um machado ou um serrote, o velho Santos, de 69 anos, racha a madeira em ripas de 40 cm, que armazena em um caixote grande, na cozinha. Tem sido assim desde o com o objetivo de março do ano último, quando foi obrigado a parar de fazer “bicos” uma vez que pedreiro ao suportar um acidente de trabalho, deixando de lucrar um dinheirinho extra. Na última sexta-feira (18), no entanto, Santos estava havia mais de uma semana sem receber lenha. Coçava a cabeça, preocupado, ao olhar para a madeira que ainda restava. “Isso hoje só vai resistir mais dois dias.” O fogão a gás continua instalado, mas com o botijão perto do com o objetivo. Não há dinheiro para comprar lenha, muito menos gás.
“Quando tive que parar com os bicos, cortei o gás. Se meu fruto não vier [nos próximos dias], é torcer para o restinho de gás que ainda tem aí manter até ter mais lenha. Estamos desse jeito”, lamenta Santos. Sua única Original de renda, a aposentadoria de um salário mínimo, está comprometida por empréstimos consignados. Os 680 reais que ele recebe por mês têm de manter a mulher, a neta, o marido dela e uma bisneta ainda crianças, que também moram sob seu teto. Dos adultos, ninguém tem renda fixa. Para cevar a família no fogão a lenha, a mulher de Santos, Vera Lúcia, de 63 anos, se viu obrigada a mudar a rotina. Com a bisneta de um ano no pescoço, começa a preparar o almoço às 10 horas, com uma certa sensação de estar presa ao último. Nunca consegue servir a mesa antes do meio-dia. A família mora em uma casa pertencente a uma olaria onde Santos trabalhou a vida inteira e que decretou falência no ano último. No mesmo terreno extenso da empresa, há outras três residências, cujos moradores também abandonaram o GLP.

Vera Lúcia e a sensação de retrocesso: duas horas para cozinhar o almoço no fogão a lenha
“Agora é só lenha. Parece os tempos em que eu era moça. Quando eu cheguei hoje, quarenta anos detrás, era na lenha. Agora, de novo. Naquela outra casa, tem sete pessoas. Também tiveram que parar com o gás”, disse Vera Lúcia, apontando para uma residência vizinha. “Virou normal. Tem que ter paciência, mas a gente vai vivendo uma vez que Deus manda”, resigna-se.
Moradores do Caximba há 48 anos, o reformado José Garcia Franco, de 70 anos, e a mulher dele, Ivete Franco, de 69, têm recorrido ao fogão de lenha desde o ano último. O par se mantém com a aposentadoria de Franco, também mordida pelos empréstimos consignados: de um salário mínimo, ele põe a mão em 680 por mês. Ou seja, com o preço médio do gás de cozinha, o reformado comprometeria 13% da renda familiar mensal se precisasse comprar um botijão. “Eu nunca imaginei que no com o objetivo da vida a gente fosse voltar a cozinhar a lenha por premência. O gás pesava muito para nós, porque tá louco de acima. Nunca pesou tanto. Gás, agora, é para uma coisinha ou outra, num caso de emergência”, disse José Franco. “[Cozinhar] à lenha é mais demorado. Mas a gente vai fazer o quê? Se acostuma. Se não for a lenha, não tem uma vez que fazer comida todo dia”, observou Ivete.
Segundo a FGV, o impacto que o gás exerce no orçamento das famílias pobres é mais que o duplo do sentido pelas pessoas que estão no topo da pirâmide de renda. Pelos dados da instalação, a compra do botijão compromete 2,18% do orçamento das famílias que ganham até 2,5 salários mínimos e 1,03% nas famílias que têm rendimento de até 33 salários.
Desde o ano último, o Sindicato dos Petroleiros do Paraná e Santa Catarina (Sindipetro-PR/SC) tem feito edições pontuais da campanha “Gás a preço justo”, por meio das quais já doou 1,6 milénio botijões a famílias carentes de comunidades de Curitiba e região metropolitana e entregou outros 450 botijões a preços subsidiados (a 40 reais). A categoria culpa pela suprema do GLP a política de preços dos derivados de petróleo, atrelada ao Real. “A gente tem visto várias pessoas que migram para lenha, para o álcool, que queimam materiais recicláveis em tijolinhos… A questão para eles é que eles não conseguem juntar o dinheiro para comprar o botijão. São pessoas que juntam 10 a 15 reais por dia, que ganham para deglutir”, disse o presidente do sindicato, Alexandro Guilherme Jorge.
O economista André Braz, do Instituto Brasílio de Economia da FGV, explica que a escalada do preço do gás de cozinha está diretamente relacionada à variação cambial e, assim uma vez que outros derivados, à cotação do barril de petróleo no mercado internacional. Com as perspectivas de reaquecimento da economia global e procura internacional por investimentos, o técnico estima que haja aumento da demanda por força, provocando novos reajustes. Além do gás de cozinha, o técnico alerta que outras fontes de força – uma vez que a elétrica – vão tarar no bolso nos próximos meses, principalmente nas camadas mais pobres da população.
“O gás é só porção da história. A gente ainda não sabe a dimensão da crise hídrica, mas vai esse setor de força uma vez que um todo, seja o botijão, seja a luz, vai lucrar um peso maior nas famílias em 2021 e 2022, trazendo grande desconforto às famílias de baixa renda. São gastos que não escolhem classe social, mas que têm um impacto muito maior para as famílias humildes”, observou Braz. “A saída seria pensar em matrizes energéticas com fontes mais baratas, uma vez que a eólica e a solar. Tem que pensar fora da caixa, mas tem que ser uma política de Estado, não de governo A ou B. Se a força elétrica fosse mais baixa, famílias poderiam usar fornos elétricos e não a gás ou lenha”, exemplificou.
Na ocupação do 29 de outubro, Marili Santos não tem perspectivas de recorrer a outras fontes de força, uma vez que o forno elétrico, embora ela não pague pela eletricidade – que é puxada a partir de um “gato”. A despeito das declarações recentes do ministro da Economia, Paulo Guedes, que sugeriu usar sobras de restaurante para cevar os famintos, a dona de casa estima que não vá lhe faltar comida, mas que terá que continuar recorrendo à lenha. O fogão a gás mudou de lugar, para o cômodo ao lado, e está praticamente reformado: só foi usado uma vez, em um dia em que a madeira estava úmida. Agora, com o indiferente que tem feito em Curitiba, a família tem se sentado à noite em torno do fogão a lenha que não só lhes garante o jantar uma vez que ajuda a aquecer a família. Enquanto lida com a lenha, Marili se recorda com saudade dos tempos em que era verosímil cozinhar com gás. Lembra que conseguia dar ao feijoeiro o ponto que gosta. “O meu feijoeiro fica muito bom, mas na lenha é difícil espessar o caldo. Para a gente, o gás é uma coisa que ficou pra trás. Quando concluir o restinho do botijão, acho que não vamos poder comprar outro. Para a gente, gás virou um luxo. Espessar o caldo do feijoeiro virou luxo”, lamentou.
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No Paraná, 822 milénio famílias usam lenha ou carvão para cozinhar – 51 milénio em Curitiba. Em todo o país, segundo o levantamento mais recente do Instituto Brasílio de Geografia e Estatística (IBGE), de 2019, são 14 milhões de famílias, um quinto da população brasileira.